O fechar de um capítulo aproximava-se à medida que as caixas
iam sendo fechadas. O correr da fita sobre o cartão é como se estivesse a
enclaussurar tudo o que viveu, tudo o que aconteceu nos últimos anos. Uma nova
etapa estava a começar, em outro lugar, com mais luz, mais paz, mais harmonia.
Decorreram mais de quatro anos nos quais aprendeu e conheceu um mundo mais
sombrio e cinzento, onde os príncipes não existem e as princesas são uma
miragem criada pela mente. Um mundo no qual o amor é um mero nome para designar
um outro qualquer sentimento que em nada se assemelha aquele que ela conhecia.
Ainda sente a dor no rosto, mas mais do que fisicamente a
dor no peito e na alma a sufoca. Não consegue chorar, não consegue mais sentir
algo de bom. Só uma necessidade de fugir dali, de desaparecer, de apagar da
memória tudo o que viveu, tudo o que viu e tudo o que sentiu. No dia seguinte
irá acordar sem o som dos carros, sem o cheiro a escape, sem sentir que está a mais
num lugar que não lhe pertence.
Coloca a caixa no corredor. Um último olhar sobre os cómodos
da casa. Há medida que a hora se aproxima um misto de angústia com alívio toma
conta dela. Os últimos dias foram calmos. Sem discussões, apenas curtas frases
trocadas, dormindo em zonas distintas, sem contacto algum,apenas o básico. Já
nada havia a dizer. Ele saia de manha para trabalhar, há noite fechava-se no
seu mundo e tudo continuava igual apesar das mobilias estarem desmontadas e
existirem caixas empilhadas em todo o lugar. Já tudo tinha sido feito e dito.
Já nada restava.
Ali sosinha, enquanto guardava o que ainda faltava arrumar
na mala as lembranças dolorosas teimavam em assombrar-lhe o pensamento. Queria
que tudo tivesse sido um pesadelo, que lhe deixava uma profunda tristeza
misturada com desilusão, e que de um momento para o outro iria acordar.
Todas as suas dúvidas, todas os momentos em que chorou
sosinha sem que ele a visse, sem que soubesse sequer que ela chorava, toda a
dor que sentiu em cada palavra, toda a angustia que a sufocava diariamente ao
ser trocada por outras, contra as quais ela não podia lutar pois era demasiado
insignificante para ganhar essa batalha, tudo isso era bem real. Tinha sido uma
guerra inglória. As armas que tinha eram demasiado fracas. Ela perdeu,
deixou-se vencer. O seu corpo e o seu coração já não tinham mais forças.
Tantas foram as noites sem dormir em inumeras tentativas
para encontrar os motivos que fundamentassem o que se estava a passar. Tantas e
tantas vezes que chorou sosinha no sofá da sala. Ele nunca percebeu a sua dor.
Ele nunca quis saber das feridas invisiveis que lhe causava. Trocou o amor por
algo bem menor e em cada dia passado a distância entre eles foi aumentando.
Ela nunca conseguiu chegar a ele assim como ele nunca
conseguiu chegar a ela. E o amor que ela sentia ficou fechado numa caixa
tancada com correntes e jogada no fosso que ambos contruiram. Ele nunca soube
da falta que ele lhe fazia, da vontade de estar nos braços dele, do desejo
contido, das palavras silênciadas pela mordaça que ele própria colocava. Ele
nunca percebeu que trocou o sonho por um tenebroso pesadelo.
Há pessoas que não foram feitas para estarem juntas, para
constituirem uma familia, para tomarem o café da manhã, para mostrarem à outra através de acções o quão importantes são, o quanto a
amam. Existem pessoas que não conseguem estar sós com alguém porque adoram a sua própria solidão.